Pesquisadora que liderou estudo publicado na revista Science explica porque Ceará foi considerado exemplo de resiliência na pandemia. “Foi um dos estados que adotou medidas mais intensas, e elas tiveram resultado na prática”
O Ceará foi um dos estados do Brasil que mais colheram resultados positivos ao adotar um conjunto de medidas preventivas mais intensas para conter a pandemia do coronavírus, do investimento na saúde, passando pelo fato de praticar o isolamento social e depois o isolamento social rígido, até às ações sociais. É o que aponta um estudo publicado na última semana na prestigiada revista científica Science. Liderada por Márcia Castro, diretora do Departamento de Saúde Global e População da Universidade de Harvard, a pesquisa é assinada em conjunto por dez cientistas dos Estados Unidos e do Brasil, que se debruçaram para analisar um padrão espaçotemporal da Covid-19 no País.
Em conversa com demógrafa brasileira que liderou o estudo, ela explica como a equipe chegou a esse panorama geral com números captados a partir dos dados diários dos Escritórios de Saúde do Estado, cobrindo o período epidemiológico da semana 9 (23 a 29 de fevereiro) à semana 41 (4 a 10 de outubro de 2020), e concluiu que houve uma variação de padrões entre estados e municípios no que reflete a diversidade das políticas de combate ao coronavírus, aplicadas ou não, incluindo os resultados positivos do Ceará.
“De posse dos números, ficam evidentes várias diferenças e algumas surpresas. Fica nítido que a gente não pode explicar o que aconteceu (até a semana epidemiológica 41 do ano passado), mas nesse período (de março até o início de outubro/2020), por exemplo, em função das desigualdades entre estados, pois se importasse apenas isso, a região Nordeste teria de ser parecido com a região Norte. Mas não foi isso que ocorreu. No Ceará, podemos enumerar o que foi feito para tal resultado, como da vigilância, da notificação que a Secretaria de Saúde demonstrou, ao relatar que o vírus estava circulando antes do primeiro caso confirmado. Temos o problema da baixa testagem, sim, nada disso sozinho explica o que aconteceu. E é aqui que entra o nuance das medidas preventivas, das políticas públicas implementadas, quão rígidas foram as medidas adotadas ou não, tanto em nível federal quanto em nível estadual. Então, a gente traz esse ângulo e começa a ver o motivo das diferenças entre os diferentes estados, principalmente no Ceará”, ressaltou Márcia Castro.
O panorama cearense
“Ações que foram adotadas pelo Estado preveniram as mortes”, garante a pesquisadora brasileira no estudo. “A diferença do Ceará para o Brasil é que adotou medidas preventivas mais intensas, em todas as áreas. O Estado aproveitou uma programa que já existia, o Cartão Mais Infância, e utiliza dados do Cadastro Único para expandir em outras ações sociais e dar um auxílio emergencial para a população. Enquanto para a maioria do Brasil a gente teve um hiato de auxílio, incluindo no início de 2021, quando tudo estava ficando fora de controle, em janeiro/fevereiro/março, o Ceará estava dando algum tipo de benefício aos cearenses. Por que isso faz diferença? Se você tem um trabalho informal, e de repente vem um lockdown, ou você está desempregado, pelo menos você tem como prover algo para a sua família”, apontou a especialista.
Ações de apoio aos cearenses
O Governo do Ceará implementou diversas ações com o objetivo de proporcionar melhores indicadores no combate à pandemia. Criou um comitê para decidir sobre as ações cerca de um mês antes do primeiro caso confirmado no Estado, e esse mesmo comitê, formado por profissionais de Saúde, presidentes do Tribunal de Justiça e Assembleia Legislativa, e Ministério Público Estadual, Federal e do Trabalho, e a prefeitura de Fortaleza, faz reuniões semanais, e às vezes até mais de uma por semana, para deliberar sobre o que o Estado deve fazer.
Em relação aos investimentos, já são quase R$ 1 bilhão em ações sociais e de saúde, para mitigar os efeitos da pandemia, somados entre a primeira e a segunda onda. Dentre elas, distribuição de 500 mil vale-gás social; pagamento das contas de água e luz por cinco meses para famílias de baixa renda e consumo; ampliação de 70 mil para 150 mil famílias beneficiadas com o Cartão Mais Infância Ceará, recebendo agora auxílio de R$ 100 mensais; distribuição de mais de 2,5 milhões de kits alimentação para alunos da rede pública, que também foram beneficiados com a distribuição de 347 mil chips de dados de internet com um pacote de 20GB mensais; implementação do Auxílio Catador, que virou política pública permanente e que concede benefício mensal de ¼ de salário-mínimo aos catadores que atuam na coleta de resíduos sólidos. Para o setor de bares, restaurantes e de eventos, um auxílio de R$ 1 mil aos desempregados, e a isenção do IPVA para veículos das empresas do setor. Também são elencadas a criação do Programa Microcrédito Produtivo do Ceará, que vai destinar R$ 100 milhões para beneficiar microempreendedores e trabalhadores cearenses; e o “Auxílio Cesta Básica”, no valor de R$ 200, para 150 mil famílias de ambulantes e feirantes, mototaxistas, taxistas, motoristas de aplicativo, bugueiros, guias turísticos, entre outros profissionais autônomos.
“A gente precisa lembrar que a fome está de volta ao Brasil, pois você tem todo esse cenário que a situação já não estava boa antes da pandemia, daí na pandemia alguns pequenos negócios fecharam, muitos não têm como trabalhar na pandemia de forma online, não é para todos a questão do trabalho remoto, o resultado é que o poder aquisitivo de muitos diminuíram. Muitas famílias entraram na linha da pobreza, e muita gente começa a passar fome. Esse conjunto de medidas no Ceará tenta mitigar os efeitos da pandemia. E acaba sendo um grande diferencial, comparado com outros estados que não tiveram essa iniciativa”, complementa Márcia Castro.
“Esse resultado, divulgado em uma das publicações científicas mais respeitadas do mundo, é fruto do trabalho sério e responsável que temos procurado fazer há mais de um ano, sempre respeitando a ciência e com a missão principal de salvar vidas. Agradeço a todos os profissionais de saúde pelo incansável trabalho durante essa pandemia, assim como a importante participação de órgãos e instituições parceiros nessa luta”, celebrou o governador do Ceará, Camilo Santana.
Interiorização de casos
O estudo demonstra que o Ceará foi o sexto estado em interiorização de casos. “Ou seja, houve uma interiorização intensa dos casos, porém, quando você olha interiorização das mortes, o Ceará cai para o antepenúltimo. Mesmo com uma sobrecarga no sistema hospitalar, e que chegou até a faltar leito de UTI no final de abril/início de maio de 2020, se teve a decisão pelo isolamento social rígido no Estado. Morreu muita gente, como em qualquer outro lugar do Brasil, mas o Ceará conseguiu reagir de tal forma que, apesar dos casos terem se propagado ao Interior, não se refletiram em mortes num nível tão intenso quanto poderia ter sido. Isso é um exemplo claro que as ações que foram adotadas, segundo nossa pesquisa, que Ceará foi um dos estados que adotou medidas mais intensas, e elas tiveram resultado na prática”, apontou a diretora do Departamento de Saúde Global e População da Universidade de Harvard.
“Felizmente, nós temos os Hospitais Regionais, que assim, como outras unidades de saúde espalhadas pelo interior do Ceará, promovem uma descentralização, fazendo com que a regionalização da saúde seja real em todo o Estado. E tem cada vez mais sendo uma política de saúde que se prova eficiente, fato registrado na pesquisa publicada da renomada revista Science, como um dos fatores que mostra como todas as regiões do Ceará enfrentaram a epidemia de forma exemplar, fazendo com que a interiorização da pandemia tivesse um impacto menor aqui”, explicou Carlos Alberto Martins Rodrigues Sobrinho (Dr. Cabeto), secretário da Saúde do Estado.
Isso explicado também pela pesquisadora de Harvard, ao comparar com os casos do Rio de Janeiro e do Amazonas. “Quando a gente olha para os indicadores de casos e mortes por interiorização, o estado que mais teve a intensa interiorização tanto de casos como de mortes foi o Rio de Janeiro. Isso me surpreendeu. O segundo foi o Amazonas, estava dentro do previsto. Ambos tiveram sobrecarga no sistema hospitalar, inclusive com a falta de leitos de UTI. Mas o Rio tem muito mais oferta de leitos de UTI que o Amazonas, que concentra seus leitos na sua capital”, afirma Márcia, que ainda destaca que esse resultado positivo do Ceará a surpreendeu muito, pois o estado nordestino ficou à frente de estados do Sul e Sudeste, que possuem uma distribuição de unidades de saúde maiores que ele.
“Isso não deveria ser surpresa, pois se você responde a uma pandemia com as medidas corretas, você vai de certa forma controlar a pandemia. E levanto para o panorama geral: isso demonstra que houve uma falta de coordenação nacional, pois as ações pelos estados do Brasil foram feitas de formas diferentes, em tempos diferentes, e o resultado é uma pandemia fora de controle pelo Governo Federal”. A pesquisadora completa: “As ações de estados e municípios sozinhos não conseguem reverter uma situação do quadro nacional, pois o Brasil é muito grande e diverso. São 5.570 municípios, então você vai ter alguns municípios e estados fazendo a coisa certa e outros que não estão fazendo nada, e aí a gente vê a falta da ação coordenada. O município é o implementador, mas a gente tem um Pacto Integrado da Saúde, regido pelo SUS, que você precisa do nível federal, articulado com o estadual, articulado com o municipal. Esse pacto se rompe, a gente não teve isso. E ainda não tem”.
A pesquisa
“O objetivo era dar um panorama bem completo de como a pandemia se espalhou no território brasileiro. Entender se casos e mortes se aglomeraram em tempo e espaço no território brasileiro. Tentar entender como se deu o processo de interiorização de casos e mortes por Covid-19, para poder comparar esse processo entre diferentes estados do Brasil. Buscamos indicadores que conseguissem mostrar a intensidade e a velocidade dessa interiorização, chegamos ao Índice de Hoover aliado ao Indicado de Oxford. Então, juntando os números a todas essas medidas de cada localidade, pois o trabalho usa diferentes metodologias, para chegar ao panorama mais completo – até agora – sobre como a pandemia se espalhou pelo Brasil”, explica Márcia Castro.
“Ao final das análises, tentamos mostrar com essa grande colcha de retalhos, a desigualdade é uma das peças, e o alinhamento político é outra peça, por isso temos de juntar todos esses dados, e não podemos deixar de fora em nossa análise”, afirma a pesquisadora, que inclui dentro das peças estudadas o conjunto de medidas no Ceará para tentar mitigar os efeitos da pandemia. “E acaba sendo um grande diferencial, comparado com outros estados que não tiveram esse tipo de iniciativa”, conclui Márcia Castro.